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Leitura de “Amada”, de Toni Morrison, é um misto de poema lírico e um manual de sobrevivência

  • Foto do escritor: Thaiane Machado
    Thaiane Machado
  • 30 de set.
  • 9 min de leitura

Atualizado: há 4 dias

Um livro que pede pausa, como um copo d’água, uma janela aberta, um minuto de silêncio antes da próxima página.


por thaiane machado

Não há como falar de "Amada"*, sem mencionar a trajetória de Toni Morrisson

Não há como falar de "Amada"*, sem mencionar a trajetória de Toni Morrisson. Afinal, foi a partir dela que esse romance nasceu - inclusive, na edição do livro, publicado em 2007 pela Companhia das Letras, ela nos contextualiza o nascimento dessa obra. Toni Morrison (1931-2019) foi uma escritora, editora e professora norte-americana, vencedora do Prêmio Nobel da Literatura em 1993, tornando-se a primeira mulher negra a conquistar tal honraria.


Durante a sua carreira como editora e professora, Morrison começou a escrever ficção. Um dos seus primeiros contos, sobre uma menina negra que desejava ter olhos azuis, foi transformado numa obra mais longa, resultando no seu primeiro livro, “Os olhos mais azuis (The Bluest Eye)” (1970), um romance de iniciação sobre uma adolescente negra vitimizada e obcecada pelos padrões brancos de beleza. Em 1973, foi publicado o segundo romance de Morrison, "Sula", que explora a dinâmica da amizade feminina e as expectativas de conformidade na comunidade negra. Foram muito romance, muitos prêmios.


Em 1974, Toni Morrison trabalhou com o editor Middleton A. Harris para compilar uma vasta coleção de escritos de jornais, fotografias, cartas, panfletos e outros itens que documentavam a experiência negra para uma obra enciclopédica intitulada “The Black Book”. Enquanto trabalhava neste projeto, ela descobriu a história de Margaret Garner que inspiraria seu romance “Amada (Beloved)”, que só foi publicado em 1987.


 

Margaret Garner, conhecida como "Peggy", fugiu grávida aos 22 anos, com seus quatro filhos, seu marido e seus sogros da fazenda onde era escravizada. Antes da fuga, Peggy trabalhava como escrava doméstica e ama de leite da esposa do seu dono, Archibald K. Gaines. Historiadores especulam que muitos eram os abusos que Peggy sofria por parte de Gaines, e que pelo menos dois de seus quatro filhos foram frutos de estupros.

 

Peggy nunca conheceu outra vida, durante toda sua existência, a violência fez parte de sua rotina diária, fosse ela física ou psicológica. Após fugir com sua família, ela procurava uma vida diferente para os filhos, e quando foram encontrados pelos agentes federais, Peggy, tomada pelo desespero, decidiu cortar a garganta de sua filha de dois anos, pois preferia vê-la morta a deixá-la voltar para a escravidão. Não conseguiu fazer o mesmo com seus outros filhos, e após ser capturada nunca mais feriu nenhum deles.


O julgamento de Garner durou semanas, e a ideia de seu advogado de defesa era que ela fosse acusada de assassinato, para desafiar a lei do Escravo Fugitivo e abrir precedente de direitos civis; em vez disso, Garner foi indiciada por danos materiais. Após o julgamento, Margaret Garner foi enviada com seus filhos e seu marido para a Louisiana e vendidos para o irmão de seu antigo senhor de escravos. Peggy passou os últimos anos de sua vida ainda escravizada, e morreu em 1858 de febre tifóide. Fonte: Querido Clássico


"Não tem uma casa no país que não esteja recheada até o teto com a tristeza de algum negro morto. Sorte nossa que esse fantasma é um bebê. O espírito do meu marido podia baixar aqui? Ou do seu? Nem me fale. Sorte a sua. Ainda tem três sobrando. Três puxando suas saias e só uma infernizando do outro lado. Agradeça, por que não agradece? Eu tive oito. Um por um foram para longe de mim. Quatro levados, quatro perseguidos, e todos, acho, assombrando a casa de alguém para o mal.” Baby Suggs esfregou as sobrancelhas. “Minha primeira. Dela só lembro é do quanto gostava da ponta queimada do pão. Dá para acreditar? Oito filhos e é só disso que eu lembro. (p. 20)

Ao recontar esse evento, Morrison aspira explorar o mundo interior dessa mulher sobre a qual ela pouco sabe. Ao contar a história de Margaret Garner, a quem Morrison chama de Sethe no romance, somos apresentados à instituição cruel que moldou a psique machucada e abalada dessa personagem. O romance se inicia no caos emocional e espiritual atual da casa número 124 e seus habitantes: a mãe Sethe, a filha Denver e o fantasma que Sethe nos diz não ser "mau, mas triste". À medida que a narrativa avança, o leitor precisa se esforçar para juntar os fragmentos irregulares do caótico mundo interior de Sethe.


Sethe, mata sua filha e passa a viver atormentada por seu fantasma que assombra a casa da sogra, local para onde se refugia com Denver, sua filha mais nova. As histórias de dor, pesar, tristeza e culpa pareciam ser absorvidos pela casa de número 124 que tem como personagem central o espírito de um bebê assassinado, rançoso, melancólico, raivoso, carente e traumatizado, que movia os móveis, machucava animais e mantinha longe toda e qualquer pessoa que não fosse Sethe e Denver. Isso até Paul D aparecer, um homem gentil, mesmo com um passado tão sofrido quanto o de Sethe, e com sentimentos verdadeiros pela mesma, trazendo para ela a possibilidade de uma nova vida.


A dificuldade do livro é uma escolha estética e ética. Não há trilho reto e sim uma lógica quebrada de quem recorda como pode. O tempo não obedece cronologia, ao contrário, ele corre, volta, encalha, recomeça, como a nossa memória. A leitura se torna um gesto de escuta, no qual juntamos fragmentos. Morrison nos recusa a facilidade da narrativa “limpa”, exigindo que a gente se envolva, que aceite a lentidão de quem precisa encontrar palavras que não machuquem de novo. O efeito é o de estar no meio de uma casa onde, a cada porta aberta, um cômodo conta outra parte da história.


Esse mundo é construído sem fronteira rígida entre dentro e fora, causa e efeito, realidade e assombro. A língua de Morrison acompanha essa arquitetura, construindo uma cadência de fala que ora chega como se alguém estivesse contando baixinho na varanda, ora páginas que aceleram, quase sem pontuação, obrigando o leitor a marcar o fôlego. A autora também inventa vocabulário em colagens como gentebranca, moçabranca, gentepreta que condensam história e estrutura numa só palavra. Ao colar, ela recusa a gramática que disfarça o sistema sob a aparência de indivíduos isolados: não é “gente (que é branca)”, são aparelhos (lei, capataz, caçador, dinheiro) operando em bloco, onde a norma tenta aplainar.


O livro se organiza em três partes, que funcionam como o movimento da própria história: primeiro, “o 124 era rancoroso...” (p. 17-224) na maior parte do livro trazendo a base para o leitor entender sobre as questões principais da narrativa (casa, os fantasmas, espíritos, memórias, traumas), o ato de Sethe em matar a sua filha e a volta de Amada; depois, “o 124 era ruidoso...” (p. 227-313), que traz todos os barulhos interiores das pessoas que vivenciaram o ato de Sethe, assim como as perspectivas das personagens sobre Amada (mãe, filha e e irmã) - Morrison exige muito de seus leitores, especialmente nesta seção, pois o passado perturba o presente e nós, como os personagens chocados e desorientados do romance, devemos encontrar a verdade apenas por meio da assombração; por fim, o 124 esta quieto...” (p. 317-363), com o encaminhamento para a quietude, diante de um encantado que passou a fazer parte da vida, mas sugar o que acha ser seu. Temos a sensação generalizada de desesperança, mas é domada pelo amor e pelo cuidado.


Neste romance, a memória é uma força que molda o presente. A casa 124, as lembranças de Sethe, os lapsos de Paul D e a vigilância constante de Denver mostram que a violência não termina quando o corpo sai da Doce Lar, casa em que as personagens eram escravizadas (inclusive, a Baby Suggs, a sogra de Sethe).  O romance é construído em idas e vindas justamente para que o passado não possa ser “arquivado”, ao contrário, ele insiste, interrompe, cobra, reorganiza as relações no agora. Vemos esse trauma pela forma como Sethe vivencia o cotidiano, sempre atravessada por flashes que a deslocam do tempo presente. Denver, que nasceu fora do cativeiro, é afetada pela herança que não viveu, cresce com medo, isolada, aprendendo a ler o mundo pelos sinais de perigo que cercam a mãe.


Essa memória traumática é transmitida entre gerações, revelando que o fim formal da escravidão não significa esquecimento. A memória, em "Amada", aprisiona, mostrando o peso histórico que se recusa a desaparecer, como o corpo de Sethe sendo colocado na história como uma inscrição viva da violência. A cicatriz-árvore é lembrança do chicote, mas também metáfora de resistência. Esse corpo-memória carrega dor e possibilidade de renascimento. A árvore nas costas de Sethe é tanto marca de violência quanto símbolo de vida que insiste em florescer. A cicatriz revela como a violência física da escravidão se transforma em narrativa, permitindo que o corpo seja testemunha e arquivo.


“Eu tinha leite”, disse ela. “Estava grávida da Denver, mas tinha leite da minha filhinha. Não tinha parado de amamentar ainda quando mandei ela na frente com o Howard e o Buglar.” [...] “Usaram o chicote em você?” “E tomaram meu leite.” “Bateram em você e você estava grávida?” “E tomaram meu leite!”. (p. 34)

A maternidade aparece como terreno minado onde cada gesto é cálculo entre risco e proteção. O que o recorte jornalístico resumiu em choque, Morrison alonga em dilema entre o amor que precisa escolher entre uma marca para carregar ou a filha ser marcada para sempre. Para mulheres negras, o direito de cuidar da própria prole era negado pelo regime escravocrata. O episódio no qual seu leite foi roubado transtornou tanto Sethe e demonstra como a dor de não poder preservar algo que seu próprio corpo produziu para alimentar seu filho foi um grande combustível para ela tomar a decisão fatídica que ocasionou o assassinato de sua filha. A violência sexual e emocional que Sethe sofreu ao ter seu leite roubado parecia doer mais que as marcas que carregou nas costas durante toda a vida. A raiva que Sethe sente e o desespero ao pensar que seus filhos, principalmente as filhas, poderiam passar pelo que ela passou. O gesto radical é fruto de um amor atravessado pelo terror de vê-la escravizada. Morrison sugere que a maternidade preta, nesse contexto, é sempre resistência, ainda que em formas dolorosas e incompreensíveis. Denver é a outra face dessa maternidade: ama a mãe, mas cresce sob a sombra do que aconteceu. Sua trajetória, da clausura à abertura para o mundo, mostra como filhas e filhos também herdam estratégias de sobrevivência e medos.


O reaparecimento da filha morta como jovem adulta é a materialização do passado que não recebeu sepultura simbólica. Amada chega com fome desmedida, exigindo atenção, alimento e linguagem, exatamente o que faltou quando foi arrancada do mundo dos vivos. A chegada de Amada trouxe para cada um dos moradores do 124 emoções distintas. Para Sethe, a esperança de recomeço, mas que na verdade se desenvolve para uma relação abusiva e obsessiva. Amada quer amor, mas também quer vingança. Ela a odeia e ao mesmo tempo a ama tanto que quer se fundir a ela. Já Denver perde o centro. Mesmo apaixonada pela irmã e carente de sua atenção, Denver notou antes da mãe que a garota era perigosa. Paul foi único que tratou a recém-chegada com desconfiança. A relação que desenvolveu com Amada deixa Paul D esgotado, assustado e culpado. Apenas a simples menção a Amada faz com que ele entre em desespero.


Entretanto, a única com direito inquestionável de julgar as ações de Sethe seria a própria criança morta, e é exatamente isso que Amada faz. Enquanto leva Sethe lentamente à loucura, fazendo-a parecer cada vez mais destruída física e emocionalmente, Amada engorda e se modifica, e os papéis se invertem, fazendo Sethe regredir ao estágio infantil. Ao final, é o gesto coletivo que “desfaz” o encantamento, sem espaço para o milagre individual, nem moral de fábula. O que há é a compreensão de que certas dores só podem ser deslocadas quando um grupo inteiro sustenta o peso do passado e oferece um lugar para ele. O retorno de Amanda, então, se converte em possibilidade de seguir, não por esquecimento, mas por realocação da memória.


Toni Morrison fez questão de dar indícios de um final feliz para sua Sethe e aos demais moradores sobreviventes do 124. O último diálogo entre Paul D e Sethe carrega uma delicadeza sem igual e transmite ao leitor um sentimento de esperança e amparo, além da possibilidade de uma nova vida com paz e amor. E, quando fechamos o livro, mantemos o ouvido e a língua afinados o bastante para que, diante de qualquer 124 da nossa época, a gente não peça silêncio aos fantasmas, dando lugar, encontre um modo mais honesto de seguir.


Ler "Amada" é sair com uma espécie de incumbência íntima. Guardamos um chamado a honrar as vozes que nos trouxeram até aqui, a praticar as pequenas teimosias que sustentam os dias, a não separar o cuidado do sagrado, a devolver nome ao que o mundo tentou reduzir. No fim, essa leitura nos mostra que não há promessa de redenção fácil.


*Amada” ganhou o Prémio Pulitzer de Ficção em 1988 e é amplamente considerado um dos romances mais importantes da literatura americana, servindo como um poderoso comentário sobre o legado da escravatura nos Estados Unidos. O livro foi o início de uma trilogia, que teve como sequência “Jazz” (1992), que conta uma história de violência e paixão ambientada no Harlem, bairro negro de Nova Iorque, nos anos de 1920. O terceiro livro que completa a trilogia “Paraíso” (1998) fala de uma cidade fictícia habitada apenas por negros, em Oklahoma, que se desestabiliza com a chegada de uma branca.



 
 
 

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